a vida é a média entre o tudo e o nada
O
documentário traz uma conversa descontraída e bem humorada entre as intérpretes
Maria Bethânia e a ilustre professora de Literatura Portuguesa Cleonice
Berardinelli. Maior lusitanista brasileira, a professora Cleonice é
especialista em Luis de Camões e Fernando Pessoa. Sua tese sobre Fernando
Pessoa foi a primeira no Brasil e a segunda no mundo. É professora emérita da
UFRJ e da PUC Rio e membro da Academia Brasileira de Letras.
A conversa se desdobra em uma excelente aula
sobre Fernando Pessoa e sua obra envolvendo, desde a declamação de poemas, às
vezes brevemente comentados, a informações sobre o poeta e a criação dos seus
heterônimos. Entre estes Alberto Caeiro, a quem Pessoa atribui o estatuto de
mestre, e de cuja obra são extraídos os poemas XI e X
declamados no início do documentário. O aparecimento de Alberto Caeiro, nas
palavras de Pessoa, deu-se em um dia triunfal, quando numa espécie de êxtase teria
escrito os trinta e tantos poemas que vão compor O Guardador de Rebanhos. Na
voz da intérprete, Pessoa o define: Pus
no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática.
Pequenas
interrupções para explicações, intervenções breves e pertinentes, dados
biográficos ilustrados com poemas. O documentário é coerente quanto ao
princípio de que Fernando Pessoa se define por sua obra, que é sua fonte
biográfica. Isto se pode ver claramente no poema Autopsicografia e muito se
revela no poema “O dia dos meus anos”, declamado com maestria pelas duas
mulheres: o que eu sou hoje (e a casa dos
que me amaram treme através das minhas lágrimas). O que eu sou hoje é terem
vendido a casa. /é terem morrido todos, /é estar eu sobrevivente a mim mesmo
como um fósforo frio...
Podemos
ainda nos emocionar ao ver uma sublime declamação do não menos sublime “poema
em linha reta”, de Álvaro de Campos. Violento, desencantado, irritado e crítico
na definição da professora Cleonice. Sobre este heterônimo, diz Pessoa: Pus no Álvaro de Campos a emoção que não dou
nem a mim nem a vida.
Não
menos atenção se dispensa ao heterônimo Ricardo Reis, que na opinião da
professora Cleonice Berardinelli teria sido uma criação difícil, visto
tratar-se de um poeta antigo, clássico, pagão da renascença. Seus versos são
rigorosamente medidos, mas não têm rima. O poema declamado: Quer pouco: terás tudo. /Quer nada: serás
livre. /O mesmo amor que tenham / Por nós, quer-nos, oprime-nos. /Não só quem
nos odeia ou nos inveja /Nos limita e oprime; quem nos ama /Não menos nos
limita. /Que os deuses me concedam que, despido /De afectos, tenha a fria
liberdade /Dos píncaros sem nada. /Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada /É
livre; quem não tem, e não deseja, /Homem, é igual aos deuses.
Uma
das mais celebradas obras-primas da literatura de língua portuguesa, o livro
Mensagem é também reverenciado na voz das intérpretes. Nesta obra o poeta
dedica profundo amor patriótico e desejo de regeneração nacional. Trata-se de
uma obra poética que canta as glórias de Portugal entre o épico, o lírico e o
místico e traduz a alma portuguesa na sua vocação heroica, mística, saudosista
e messiânica. Dessa obra são declamados os poemas O Infante, O Monstrengo e
Prece.
É
importante salientar que a relevância do documentário reside, não somente em
promover maior divulgação da obra de Fernando Pessoa, mas também em homenagear a
brilhante atuação da professora Cleonice Berardinelli. Vale a pena.
O VENTO LÁ FORA (documentário) – Cleonice Berardinelli, Maria Bethânia e a poesia de Fernando
Pessoa. Direção de Marcio Debellian. DVD. Inclui CD com a íntegra da leitura
dos poemas. SESC, Quitanda, Debê Produções, 2014.